terça-feira, 8 de novembro de 2016

Nossos inevitáveis cafés da manhã


"Bom dia, dia!!". É o que sempre penso quando acordo. Ao pronunciar isso mentalmente, vem logo outro pensamento, "ai, vou ter que sair do quarto para tomar café. O pequeno está com fome, não posso mais protelar nesta cama. Vamos lá, matar o dragão de hoje. O que será que virá dessa vez?!" E como se eu não soubesse a resposta, mas eu sempre sei, sigo acreditando que hoje o dia será diferente!

Hoje acordei assustada, às 08h30 da manhã com minha mãe com a mão na minha barriga. Pensei: "Putz, que susto! Que horas são? O que houve?", depois só tentei abrir os olhos e entender o que estava acontecendo. Havia acordado mais cedo, às 05h40, mas a casa estava escura e sem nenhum ser dando sinal de vida, então fui ao banheiro, voltei a me deitar e às 06h acordei com o despertador tocando. Fui ao quarto do Miguel, o acordei para se arrumar e ir à escola, enquanto meu marido se trocava e se preparava para um teste em um novo emprego, todos sairiam de casa antes das 06h30 e eu só voltei a cochilar depois das 07h. 
Voltando ao meu terceiro despertar, meu maior temor agora, eu estava sozinha com minha mãe, no quarto, me perguntando alguma sobre eu ter visto o preço de guarda-roupa para vender na internet. Respondi que não vi e ela começou com a ladainha de sempre. Sim, eu tenho medo da minha mãe e dos meus sentimentos em relação a ela, principalmente por ser a minha mãe, minha genitora e quem sempre esteve ao meu lado nas horas ruins, mesmo me cobrando a perfeição e jogando na cara que estava ali para me ajudar -- percebam quanto rancor nesta últimas sentenças. 

Há um ano e meio mais ou menos, perdemos muito dinheiro com a compra fracassada de uma loja de alimentos, na tentativa de sair do caos em que nos encontrávamos, eu desempregada e meu irmão também, e ficamos bem pior do que antes. Compramos a loja numa época em que o país afundava e nem os novos compradores, depois de mim, que tinham dinheiro para investir e se manter por lá, conseguiram permanecer com ela aberta por mais de três meses. Confiamos em um primo pilantra, e sem o menor pudor profissional ou pessoal, que nos vendeu um estabelecimento comercial fadado à falência, dizendo que nos auxiliaria em tudo, entrando inclusive como sócio -- claro, sem dar um centavo, mas oferecendo seus préstimos e experiência no mundo dos negócios. Confiamos no nome da instituição para o qual ele presta serviço e na descrição "fabulosa" de seu currículo. Fail total!! Investimento inicial, vinte mil reais. Hoje a dívida acumula empréstimos de familiares que nos concederam dinheiro, três processos na justiça, dois de funcionárias contra a empresa, num valor total de cinquenta e cinco mil reais, e um último referente a um financiamento no Banco do Brasil, cuja ex-proprietária pede setenta e seis mil reais de indenização. Em contrapartida, a nova proprietária também está sendo processada por mim por não ter cumprido cláusulas contratuais; e como eu disse na justiça, não quero um centavo da nova proprietária, quero que todo o dinheiro que talvez ela tenha que me pagar passe diretamente para a antiga proprietária, pois o meu objetivo não é ganhar nada que venha daquele lugar, mas me livrar de tudo e todos que me fazem lembrar que um dia tentei ser comerciante no Brasil!!

Bom, mas como tudo que é ruim tem um lado bom, por causa de todos esses problemas, tive o privilégio de conhecer o meu marido enquanto estávamos na loja, pois ele trabalhou comigo, e foi ele o meu suporte emocional para lidar com toda a turbulência que vivi naquela época. Hoje estamos à espera do primeiro filho dele, e do meu segundo filhote; na verdade terceiro, porque estive grávida no final do ano passado e perdemos a pequena Aisha aos cinco meses de gestação, em maio deste ano. Ela tinha uma síndrome e não resistiu. Então, o Noah, oficialmente, é o meu terceiro filho!! E estamos muito felizes com a vinda dele. 
Para não dizermos, então, que 2015 foi um ano terrível, tivemos o nosso casamento que foi muito lindo e emocionalmente uma das melhores experiências que tive na vida, apesar de nunca ter sonhado de verdade em subir o altar de uma igreja com alguém, nem fazer mais planos de casamento aos 36 anos de idade. À época, a grana era pouquíssima pois naqueles dias não saia um real da loja para o nosso bolso, somente para pagar a gasolina do carro para irmos trabalhar e fazer compras para a loja; contamos com a ajuda de familiares e amigos para que a festa de casamento fosse realizada e foi um sucesso! A igreja estava linda, o jantar aqui na casa da minha mãe foi maravilhoso, ganhamos também a fotografia do evento todo, estávamos cercados de muito amor e carinho e isso pagou qualquer big festa que talvez um dia tivéssemos planejado. Eu estava bem feliz naquele dia!!
Depois veio a crise maior na loja e as coisas estavam insustentáveis. Eram três funcionários na loja, eu, no caixa, o Amir e um amigo do Paquistão na cozinha. Acordávamos às 08h, saíamos para fazer compras, e voltávamos para casa meia noite ou uma hora da manhã. Dias de horror. Não gosto nem de lembrar. Vendi a loja em junho de 2015, alugamos nossa casa no final de outubro e em novembro estávamos de volta à casa da minha mãe, apesar de eu implorar para o Amir para tentarmos outra alternativa, e não voltar para cá, pois só eu sabia como era a minha relação com ela e como era difícil para mim tomar aquela decisão, mas ele insistiu dizendo que eu deveria superar o problema com ela e enfrentar que estávamos passando por uma crise séria e que nessas horas a família deve ser um suporte. O que ele não sabia é que nunca nos encaixamos, verdadeiramente, num modelo exemplar de família feliz! Mas enfim, concordei e aqui estamos há um ano que mais parece séculos!

Todos dos dias, desde que me mudei de volta para a casa da minha mãe, tenho vivido dias intermináveis, mal sucedidos e de extremo sacrifício, agora não só para mim. São brigas diárias que sufocam, que aprisionam, que nos deixam todos frágeis e estressados. E o motivo principal, dinheiro. O que mais me mata por dentro, porque esse é o grande ator na vida de Maria Hilda, que já passou muita dificuldade ao longo do caminho e acha que isso -- o dinheiro -- é o essencial para ser feliz, apesar de eu sempre achar o contrário. Não faço mais festas em casa, é raro convidar meus amigos para virem aqui, tudo se tornou bem monótono e sem vida na "casa de mamãe".
Meu marido tentou de todas as maneiras se dar bem com a sogra, hoje ele dá bom dia ou boa noite, no máximo; evita qualquer contato para não ter que se indispor com ela, por respeito. Meu filho desenvolveu, sozinho, a tática de evitar conflitos e gritaria em casa, pedindo desculpas a ela por tudo, mesmo que ele de fato não tenha feito nada. Eu emudeço a cada alfinetada. Fervo por dentro, como uma chaleira pronta para explodir -- sempre fui altiva, explosiva, agressiva com as palavras quando estava nervosa --, mas essa foi a única maneira que encontrei de permanecer calma, sóbria, até porque também estou grávida, e não quero desrespeitar minha mãe mais do que o que eu já fiz a vida inteira!!

Quando resolvi voltar a escrever no blog, decidi aliviar minhas mágoas para ninguém e todo mundo ao mesmo tempo. Seria minha válvula de escape. Há muito tempo, minha terapia tem sido comigo mesma e com o passar dos meus dias. Já me disseram para procurar um especialista, mas prefiro encarar meus problemas e tentar resolvê-los por mim mesma, até porque, mesmo que eu quisesse, não deveria ser só eu a fazer um tratamento psicológico, e como já houve uma tentativa da minha parte, que falhou porque minha achava perda de tempo e de dinheiro nos abrirmos para um psicólogo, só me restou não levar meus problemas a ninguém porque no final das contas só depende de mim e dos envolvidos neles a resolução dos impasses. 

Há dois anos eu era uma nova Helen, cheia de vida, sorriso largo, mesmo em tempos de intempéries -- como sempre há --, receptiva aos amigos, familiares, estava sempre de bem com a vida. Tudo isso se deu depois que passei, oficialmente, a seguir o Espiritismo. Hoje voltei ser a Helen de sempre, de uma vida inteira, mais retraída, menos sorridente, porém mais consciente de mim mesma. Confesso que no último ano entrei num ostracismo medonho, não porque eu não queira estar com as pessoas, mas porque decidi que não quero levar adiante minhas mágoas, meus anseios, nem perturbar os outros com os meus problemas; e se não tenho, efetivamente, coisas interessantes e agradáveis para compartilhar com eles, prefiro ficar quieta até que a boa onda volte! Às vezes, parece que não me importo com mais nada nem ninguém, mas é o contrário, por me importar com essas pessoas é que admito não ser uma boa companhia nesses últimos meses. Muitas vezes me vi extravasando, falando da situação aqui de casa e me lamuriando, mas passei a me vigiar para não fazer mais isso, pois estava expondo os meus e, principalmente, a minha mãe. Estamos agora, eu meu marido, na tentativa de falar menos possível sobre os problemas com ela.

Voltando ao meu café da manhã, depois da mão na barriga, me levantei, lavei rosto, troquei de roupa e fui tomar café, enquanto ela já estava por lá, na cozinha, após termos falarmos sobre dinheiro no quarto e sobre meu marido não querer mais contato com ela -- sempre tem um assunto que deve vir à tona, instigado por Maria Hilda, para começarmos o nosso dia com os dois pés esquerdos! Enquanto eu engolia o cuscuz e tomava o café com leite, ela dizia o quanto necessitava de dinheiro e eu tentava explicar a situação pelo qual passávamos -- pela milésima vez tentando convencê-la a mudar de atitude --, falava como era mais fácil aceitar as dificuldades, acreditar as coisa aos poucos vão melhorando  e que não adiantava ficar procurando culpados e reverberando ao universo quão infeliz era a vida. E é exatamente nesse ponto que somos o oposto uma da outra!! Perguntei a ela se depois de tudo o que eu estava passando, se ela me via gritando dentro de casa, nervosa, maltratando as pessoas com quem eu convivia ou rogando aos céus que tivessem piedade de mim pois eu não era merecedora das coisas que estão acontecendo. Nesse momento passei para a pia e fui lavar toda a louça suja que lá estava, eis que ela solta: "Enquanto você estiver frequentando o centro espírita, minha vida não progredirá e eu não serei feliz.". Aí não me contive, em pleno ENEM contra a intolerância religiosa, ela me vem com essa... sem noção! Falei muita coisa, sem me exaltar ou desrespeitá-la, mas disse o que estava pensando naquele momento e finalizamos a discussão minutos depois, quando eu aconselhava que ela não tentasse justificar os próprios problemas atribuindo isso à religião alheia pois uma coisa não tinha nada a ver com a outra. 
Muito apegada ao dinheiro sempre, esse é maior muro das nossas fronteiras, ela não está conseguindo aceitar que a família passa por dificuldades financeiras, não está sabendo lidar com a perda de estabilidade, com a situação toda, então está surtando.
 
Tem uma coisa que me irrita muito tanto quanto gente mexeriqueira e invejosa, é a pessoa que tenta se fazer de vítima, fazendo a dramática, para ganhar a compaixão alheia. Estou tentando manter distância desses indivíduos. E minha mãe tem esse dom, só que estou mais próxima dela do que nunca -- tão perto e tão longe. Minha mãe faz um drama, um teatro, para que as pessoas tenham compaixão da situação de vida dela, das mil dificuldades pelas quais já passou, e está passando, ela falta se ajoelhar no chão em cena típica de novela mexicana pedindo misericórdia. O que ela não aceita e não se orgulha é de todos da nossa família estarmos com saúde, vivendo bem, numa casa própria, com carro na garagem, morando do centro de Brasília... sobrevivendo!! Mas na sua cabeça, é pouco, não é suficiente pois os outros têm bem mais.

Eu não tenho mais paciência para drama, e eu sei que muitos me julgam errada por não ter paciência com minha própria mãe. Talvez porque a vida inteira eu tenha me comportado como vítima, espelhada em algum comportamento familiar (tsc), e isso era a justificativa que eu usava para me desculpar, a mim mesma e aos outros, pelos meus fracassos e a incapacidade de resolver os meus problemas sozinha. Sempre fui muito super protegida, mimada ao extremo, nunca consegui lidar direito com a perda e insucesso, então, aprendi, na marra, que não adiantava me fazer de coitada pois não ajudava em nada a sair do buraco. A vida me fez aprender que eu era só mais uma na multidão e que problemas todos têm, eu não era mais especial por achar que sofria mais do que os outros, por não ter tido um pai presente, por ter convivido com um padrasto alcoólatra, ou por qualquer outra muleta que eu quisesse criar para parecer mais fraca do que o que eu realmente era, porque havia gente com problemas muito maiores ou bem mais difíceis de lidar do que os meus. Essa não era desculpa para não tentar, para não ser capaz de realizar alguma coisa. 

Mas eu tenho que confessar, diante de toda a superação das dificuldades, ainda não suplantei a ausência materna na minha vida. Disso eu também tenho absoluta consciência. Esse é meu "calcanhar de Aquiles". É a única coisa que me desequilibra emocionalmente. Meu relacionamento com minha mãe é muito conturbado, sempre foi. Nunca tivemos dias especiais em que estivéssemos sentadas numa cama, batendo papo, trocando confidências ou carinho de alguma forma. Também não vou ser injusta de dizer que nunca recebi amor. Recebi sim, só que esses momentos não ficaram registrados na memória, talvez porque fizessem parte somente da infância e fossem muito raros porque ela estava sempre trabalhando, dia e noite, e o dinheiro que ganhou, muito suado, reconheço, era o que "comprava" a minha felicidade, minha alegria, meu amor. Tentei algumas vezes a aproximação "mãe e filha", mas nunca obtive bons resultados. Tudo resulta em brigas, cobranças eternas entre duas pessoas que se tornaram completamente opostas, completamente diferentes da expectativa que ambas alimentavam uma da outra!

Eu tenho tantas questões mal resolvidas com minha mãe que muitas vezes é difícil começar e terminar um assunto com sobriedade ou objetividade, porque as palavras vão se perdendo no caminho, nas argumentações, na vontade de falar sobre tudo, sem perder qualquer detalhe... Mas sei bem onde não quero continuar, onde não quero terminar. Pretendo, um dia, achar a solução para esse impasse. Todos falam que depois que perdemos a mãe, o mundo parece não fazer mais sentido, ou nos tornarmos para sempre incompletos. Tenho certeza que se isso vai acontecer -- apesar de não saber não saber quem vai primeiro --, eu também vou sentir a mesma coisa e talvez com um sentimento de culpa muito maior do que o normal.
Às vezes penso que as pessoas assistem às novelas e acham que aquilo tudo é ficção, que relações conturbadas entre mães e filhos e pura arte ou exagero, mas só quem passa por um relação deficitária assim é que sabe o peso disso numa vida inteira, o peso disso em todos os outros relacionamentos com o mundo ao seu redor. Talvez por isso poucos têm a saberia de serem empáticos sem julgar.

E assim nossos cafés da manhã vão desenhando o nosso dia. Mais um dia sem diálogo, nos suportando, tendo que conviver sob o mesmo teto e quase sempre nunca num mesmo cômodo da casa. Emocionalmente uma tortura silenciosa, que, por mais surreal que pareça ser, vai minando o amor maternal, sentimento que deveria ser o mais sublime entre dois seres. 
No final do dia sempre fico imaginando como seria se a hora do café da manhã, ou do almoço, se tivesse sido diferente de hoje, de ontem... Fico imaginando qual a sensação de estar em paz com a vida, tendo a mãe como maior suporte ou aliado, sem cobranças ou julgamentos, tal qual muita gente que vejo por aí em atitudes expressivas e autênticas de amor materno. E sempre que vai chegando a época do Natal ou dia das mães, fico pensando como todo ano é igual no meu desconforto em comemorar estas datas tendo que abraçar minha mãe em público sem qualquer sentimento ardente de amor, num gesto mecânico e aprovável aos presentes nos eventos em que aparecemos juntas. Parece um pensamento macabro e frio, mas é algo que foi acontecendo e que hoje tem uma dimensão muito maior do que o que eu gostaria que tivesse. Não é nenhum orgulho para mim, mas um lamento.
E apesar de não ser a mãe mais carinhosa do mundo, talvez por razões óbvias, ou não -- mais uma muleta --, tento evitar, de todas as maneiras, no meu relacionamento com o Miguel, repetir os feitos da minha relação com a minha mãe. Primeiramente, mostrando a ele que antes de qualquer conforto, poder, ou riqueza, o mais importante na vida é o amor, o respeito mútuo e a amizade. A partir daí, o resto é consequência do cultivo dessa paz que só uma família bem estruturada pode propiciar. Na busca incansável por uma família alicerçada no amor, cumplicidade e respeito, resolvi casar e ter mais um filho. Talvez na tentativa de "fazer direito" daqui para frente...

Sobre tudo isso, tem dias que penso que a minha única missão na Terra era ser uma boa filha e até agora tenho falhado nessa missão, o que me angustia, me deixa depressiva, e me faz querer ser a melhor esposa, a melhor mãe e melhor amiga do mundo para os outros, porque, no subconsciente, não quero falhar com mais ninguém importante para mim!!

Sacudindo a poeira, continuo de Kings of Leon que foi minha trilha sonora enquanto escrevia.

Por Helen de Sousa Waqas






 



A triha sonora de hoje (completa)

Talihina sky - tradução

Notion - tradução

Wicker chair - tradução